domingo, 22 de novembro de 2009

Marco: o singular e o plural de uma meta.

“Tinha apenas duas mãos
E o sentimento do mundo.”
(Carlos Drummond de Andrade- Sentimento do mundo)


Tinha o mundo todo a sua disposição, e queria sempre degustar dele, pedaço por pedaço. Não era nenhum gênio, nunca inventou uma teoria, não descobriu nenhum átomo, molécula, partícula microscópica de cromossomo perdido no meio de uma célula do dedão do pé das tartarugas marinhas do sul do Atlântico (Será que existem tartarugas marinhas no sul do Atlântico?). Não trazia nada de novo que enriquecesse o currículo da humanidade. Seu feito mais significativo no campo das ciências – do qual tanto desejava ser reconhecido – foi publicar um artigo de duas páginas sobre “A trama psicológica das senhorinhas caolhas nos jogos de bilhar”, num periódico anual de uma faculdade do Acre, do qual ele muito se orgulhava e onde ele era imensamente reconhecido.
Era “humano, demasiado humano”, e até então só tinha mostrado a sua porção cristal de neve da ponta do iceberg. Do que era realmente capaz? O mundo desconhecia. Mas, era chegada à hora de mostrar as caras, revelar o clímax do seu “eu” cientifico, assumir a autoria, controlar o guidom da própria vida acadêmica. Foi chamado em algum sonho anunciador, e numa seção mediúnica, o espírito consagrado do grande Saussure psicografou as sentenças “Paradigma X Sintagma”, e ele entendeu que deveria seguir o mestre.
A partir de então sua meta virou: doutrinar pobres almas confusas e perdidas que pairavam entre um certo instituto de letras e um incerto pavilhão três – chamando assim até parece complexo penitenciário. E lá se foi nosso messias. Escrevia, lia, corrigia, aconselhava, emprestava livros, criava referências, idealizava reuniões de departamento, tutorava meninos fazedores de versos, perdia as férias, jogava tarô, búzios e cartas, trazia a pessoa amada em três dias, aceitava cartão de crédito, garantia sucesso financeiro e, nas horas vagas, escrevia teoria.
Seu espírito agora era livre. Foucalt, Derrida, Barthes, fichinhas miúdas, já tinham sido rebaixados de livros de cabeceira, para livros de criado-mudo. Mudo? O mundo já estava pequeno para dividir entre suas peraltagens e seus afazeres, então ele resolveu repartir o tempo, colocando um ponto central. Antes do meio (A.M) e depois do meio (D.M). Só que a procura pelos seus inúmeros dotes era tanta que chegar ao centro era um problema, e a primeira parte do tempo ia se prolongando, se prolongando que findava o dia e ele ainda estava Antes do Meio, e por tal motivo, já era conhecido por todos como A. M. Fazer o quê? Era maior que ele. A vontade de pregar as palavras sagradas era incontrolável, saía quando ele menos esperava, e a garganta já não continha o grito estruturalista.
E nessa vida pós-moderna, nesse inconstante ir e vir de pessoas, palavras, sintagmas, textos, artigos e prosas, ele, A. M. passava os dias, tentando dar conta de tudo. Pior que, para inveja dos outros profetas, ele conseguia fazer bem todo o seu trabalho, além do extra e além de arrebanhar ovelhinhas admiradas para o grande seio da mãe lingüística.
Um dia não agüentei mais de tamanha curiosidade, até porque, além de mim, o mundo todo queria saber como é que ele conseguia assobiar e chupar cana, e perguntei: “Qual a fórmula para tamanha multipersonalidade, multiutilidade, multiversatilidade?” Ele não queria responder, pensou uma, duas, três mil setecentos e trinta e nove vezes, e resolveu falar, já que entregar o seu segredo não ia comprometer tanto o seu trabalho – acho que foi o argumento que usei, dizendo que: “o fazer cientifico só vale a pena quando é compartilhado”, ele não teve como resistir a essa.- e revelou: “ Na verdade tudo que eu sei nessa vida é costurar, e por tal, vou remendando um retalho no outro até surgir uma teoria nova. Devo isso aos meus primeiros passos, a minha primeira pesquisa, a faculdade do Acre, e as velhinhas caolhas jogadoras de bilhar com suas infindas tramas psicológicas”.
Dei-me por satisfeita. Entendi que não o aprenderia com palavras e sim com olhar, e fui começando a traçar uma meta pra mim, um querer ser assim, que ultrapasse a lógica matemática, um prazer instantâneo em cada retorno de céu que caiba a mim explicar o tom do azul, uma satisfação imensa da certeza de que apesar de tudo de não bom que pode vir com as escolhas, ocupo o lugar certo, e isso tudo sem deixar transbordar do copo todo o possível singular e plural que podem caber num Marco.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Entre o Mar e a Céu


No princípio de tudo, as coisas todas do mundo eram unidas num bolo só. E entre as amizades mais verdadeiras e mais confidentes estavam o Mar e a Céu, que só andavam juntos, só nadavam juntos, só voavam juntos, só aprontavam juntos, desde os tempos de mulequice,desde a época em que eram poucas gotas e poucas nuvens. Mas eles foram crescendo, tomando dimensões antes não mensuráveis, ganharam o direito do infinito – que até então era para poucos – e de tão juntos, chegavam a parecerem espelhos, e os olhos despidos de qualquer mortal podiam jurar que eram um só, já que em algum momento se uniam de tal forma...que nem saberia relatar.

Mas, enfim, o que me trás a essas não prolongadas linhas, foi o fatídico dia em que Seu Mar e Dona Céu resolveram farrear, resolveram sair de seus cômodos lugares de mansidão e darem uma volta pela noite fria do universo. Beberam demais, dançaram demais, perderam a hora e despertaram a fúria de Deus – é bem verdade que Deus não fica lá furioso, mas na falta de melhor palavra que definisse o sentimento Dele naquele momento, e até para dar uma conotação mais dramática e impactante a essa história, o narrador optou por fúria mesmo. Amanheceu, dia nublado, águas revoltas, há quem pensasse em fim do mundo, mas era ressaca mesmo. Deus chamou os réus e de maneira precisa e irrevogável deu o seu parecer: “Falta a vocês dois humanidade, falta sentir na pele- literalmente- as mazelas e os perigos dos dias e dos erros, falta o sofrimento da eternidade retraída. Por tal motivo puno-lhes retirando uma fatia de tamanha imensidão e dando-lhes roupas de homem.”


Vinte e cinco por cento do mar do mundo, agora, se concentram nele, enquanto os vinte e cinco por cento do céu se concentram nela – empreitada ainda mais difícil já que é mulher e suporta o infinito em apenas um metro e meio e uns quarenta e cinco quilos. Mas essa foi à tarefa, diria com todo respeito, menos bem sucedida do nosso Senhor, eles se encontraram na Terra, eles se reconheceram em silêncio e o que era pra ser castigo, virou uma possibilidade diferente de se amar. E eles se amaram. E eles se amam. E continuam – agora com uma freqüência ainda maior- perdendo as noites e rebulindo o universo.


E como eu sei disso?


Esse narrador que vos fala teve a possibilidade de se deitar entre eles, numa dessas tão proveitosas festas que fazem a noite passar tão rápida como uma menina que corre ao encontro do braço, abraço, de um pai.


E acredite, é bem verdade, no alvorecer do outro dia parecia o fim do mundo. Mas era ressaca mesmo.

domingo, 4 de outubro de 2009

Eu?

"Me assusta e acalma
ser portadora de várias almas
de um só som comum eco
ser reverberante
espelho, semelhante"


(Elisa Lucinda-O poema do semelhante)


Eu?
Eu, também carrego água na peneira.
Apetece-me brincar de palavrear e querer bem.
Tenho muitos amigos
Eles querem meu colo,
meu choro
minhas não palavras.
As vezes devagarzinho
As vezes quase parando.
Sou mais intuitiva que concreta
Não sou de concreto,
Cimento
Tijolo
Brita
Nada disso me compete.
A não ser na raiva
Quando mais em menina me transformo.



Preciso de gente.
Já desisti da auto-suficiência faz tempo,
E essa foi à roupa de mulher que melhor me coube.
Perco horas de estudo lendo poesia.
Assisto finais de novela.
Inícios e meios.
Nasci beirando os anos noventa,
Mas meu coração...Ah!
Esse não se acostuma com a pós-modernidade.
Ficar,
comer,
sumir
não aprendi certas conjugações.
Mas o que eu não sei
invento, re-invento.
O que tenho de bom
não é meu,não se engane!
Roubei de uma senhorinha bordadeira de sonhos
que cerziu com dedal
agulha
e linha
todos os caminhos por onde meu sangue iria passar.



E eu.


Eu?
Ora de sapatilha no pé
Ora de colar no pescoço
Unhas meio vermelhas
Meio sem cor
Vou tecendo o fuxico
De quem não muito pretende ser
À quem já apetece
Ser o que é.

Eu?

domingo, 27 de setembro de 2009


Uma velha sentada num banco que a muito tende cair. Duas meninas que distraídas brincam com as palavras e as mãos naqueles já tão conhecidos jogos infantis. Uma mãe, que já é ainda sem ser, agüenta o peso do ventre e do sol a espera da porta dianteira. Dois trabalhadores, devidamente vestidos de amarelo, num uniforme que mais parece feito de plástico, suam a testa enquanto fazem poeira ao jogar no ar um misto de insatisfação e cal. Ao fundo do ônibus um pequeno letreiro de néon com uma mensagem que mal o sol deixa ver diz: “Mantenha a distância”. No poste uma placa de vende-se. Um crente distribui panfletos com a salvação. Um vendedor de coco. Um homem de farda, olhos cansados, boina e arma na cintura. Lindas mulheres negras desfilam sensualidade num jogo de peitos, ventres, pernas e ancas, meio escondidas, meio a mostra, repetindo a melancólica malemolência que perpassa gerações. Cinco estudantes de blusa azul e caderno encostado – uns ao peito magro, outros à altura do pênis ainda em formação – andam largados discutindo futebol. Cones laranjas no meio da pista apontam a direção e delatam o ocorrido. Dois homens e uma mulher de farda, olhos cansados, boina e arma na cintura, parados no meio da rua, entre os cones laranjas, escolhem os próximos e os encaminham à esquerda. Honda’s, Suzuki’s, Yamaha’s. Uma bicicleta de som passa anunciando as ofertas da semana. Um menino por volta dos três anos cai depois de uma suada corrida e rala o joelho que agora mistura sangue, pó e lágrimas. Um avião passa tapando o sol por alguns segundos. De nada adianta remediar o cotidiano. Mais um homem de farda, olhos cansados, boina e arma na cintura, posta a voz firmemente, chuta as pernas de um outro preto – assim como ele – que por pura genética nasceu centímetros mais alto, mas que é inferior a sua farda, seus olhos cansados, sua boina e sua arma na cintura. Chuta-o para que fique no seu devido lugar. Empurra a cabeça pra baixo, para deixá-lo ainda mais baixo. Apalpa-o a procura de algo. Que se não fosse a farda, os olhos cansados, a boina e a arma na cintura diria que era de prazer. Diria não. Digo. Era puro prazer. Era com aquilo que ele deveria sonhar todas as noites já sem a farda, sem a boina, sem a arma na cintura, mas com os olhos cansados. Sempre com os olhos cansados. Irremediavelmente cansados. A única coisa – além de todas as outras que ele fingia não existir – que o assemelhava ao outro homem, a qualquer homem. Guris empinam arraias coloridas. O dia é quente, muito quente, contrastando com o frio que sai dos olhos cansados dos homens de farda, boina e arma na cintura. E, também dos olhos cansados de todos os outros homens. E mulheres. Homens pretos humilham outros homens. Outros pretos. E num apogeu de armas nas cinturas, boinas, fardas, e olhos cansados, voltam pra casa sem nada. Como todos os outros que transitam por aquela Liberdade.

sábado, 26 de setembro de 2009

(A coluna quebrada- Frida Kahlo...by Srº Poulain)



Um palmo abaixo da goela, entre um mamilo e outro, dói o chakra da minha discórdia.

Onde deveriam entrar todos os bons sentimentos, transbordam o excesso de mim que não cabe mais no peito. E, assim, vai tecendo um buraco suficientemente grande para minha ausência de querer. Ausência que corrói meus nervos, faz doer meus músculos, fermentados de tanto lutar para não ficarem parados, dói a cabeça que é o pré, inter, entre, pós texto pra prolongar o sono, dói os olhos, a nuca, o cabelo e o sexo, dói porque lhe falta algo mais prazeroso com que brincar além da
dor.

Assassinaram meus fonemas para que até minha garganta ficasse sem ter com o que brincar, e calasse o grito que quer cada vez mais alto e é cada vez mais mudo.

E nesse excesso de verso e carência de prosa, a carta que encerra o jogo é tão desconhecida quanto a palavra que declara o fim.