domingo, 27 de setembro de 2009


Uma velha sentada num banco que a muito tende cair. Duas meninas que distraídas brincam com as palavras e as mãos naqueles já tão conhecidos jogos infantis. Uma mãe, que já é ainda sem ser, agüenta o peso do ventre e do sol a espera da porta dianteira. Dois trabalhadores, devidamente vestidos de amarelo, num uniforme que mais parece feito de plástico, suam a testa enquanto fazem poeira ao jogar no ar um misto de insatisfação e cal. Ao fundo do ônibus um pequeno letreiro de néon com uma mensagem que mal o sol deixa ver diz: “Mantenha a distância”. No poste uma placa de vende-se. Um crente distribui panfletos com a salvação. Um vendedor de coco. Um homem de farda, olhos cansados, boina e arma na cintura. Lindas mulheres negras desfilam sensualidade num jogo de peitos, ventres, pernas e ancas, meio escondidas, meio a mostra, repetindo a melancólica malemolência que perpassa gerações. Cinco estudantes de blusa azul e caderno encostado – uns ao peito magro, outros à altura do pênis ainda em formação – andam largados discutindo futebol. Cones laranjas no meio da pista apontam a direção e delatam o ocorrido. Dois homens e uma mulher de farda, olhos cansados, boina e arma na cintura, parados no meio da rua, entre os cones laranjas, escolhem os próximos e os encaminham à esquerda. Honda’s, Suzuki’s, Yamaha’s. Uma bicicleta de som passa anunciando as ofertas da semana. Um menino por volta dos três anos cai depois de uma suada corrida e rala o joelho que agora mistura sangue, pó e lágrimas. Um avião passa tapando o sol por alguns segundos. De nada adianta remediar o cotidiano. Mais um homem de farda, olhos cansados, boina e arma na cintura, posta a voz firmemente, chuta as pernas de um outro preto – assim como ele – que por pura genética nasceu centímetros mais alto, mas que é inferior a sua farda, seus olhos cansados, sua boina e sua arma na cintura. Chuta-o para que fique no seu devido lugar. Empurra a cabeça pra baixo, para deixá-lo ainda mais baixo. Apalpa-o a procura de algo. Que se não fosse a farda, os olhos cansados, a boina e a arma na cintura diria que era de prazer. Diria não. Digo. Era puro prazer. Era com aquilo que ele deveria sonhar todas as noites já sem a farda, sem a boina, sem a arma na cintura, mas com os olhos cansados. Sempre com os olhos cansados. Irremediavelmente cansados. A única coisa – além de todas as outras que ele fingia não existir – que o assemelhava ao outro homem, a qualquer homem. Guris empinam arraias coloridas. O dia é quente, muito quente, contrastando com o frio que sai dos olhos cansados dos homens de farda, boina e arma na cintura. E, também dos olhos cansados de todos os outros homens. E mulheres. Homens pretos humilham outros homens. Outros pretos. E num apogeu de armas nas cinturas, boinas, fardas, e olhos cansados, voltam pra casa sem nada. Como todos os outros que transitam por aquela Liberdade.

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